I
meus dedos estão sagrando, um misto de dor e prazer percorre meu corpo, o cheiro de sangue fresco abraça meu olfato.
as teclas emperram no sangue fresco e no que coagulou.
eu tinha me curado, eu pelo menos achei sim.
quando ela voltou, eu não previ o que ela podia fazer, não previ que ela podia me obrigar escrever.
foram 13 anos, entre visitas inesperadas e pedidos gentis para escrever palavras bonitas.
achei que assim ela estava satisfeita, achei que assim ela tinha o que precisava.
não a mantive assim de caso pensado, mas tive a ajuda do cotidiano para afastar ela de mim.
nós podíamos ter sido uma só, ela me diz, uma dupla que divide as dores e alegrias, mas você escolheu me deixar.
eu não havia decidido nada, mas deixei o caso decidir por mim, isso é decidir, não é? agora eu sei.
nós podíamos ter sofrido juntas, eu podia ter estado do seu lado, mas você me feriu, me afastou, me abandou, ela disse quase que sussurrando, um sussurro que reverberava nas paredes, e me aterrorizava.
eu não consigo vê-la, apenas ouço a sua voz que vibrava em todo meu corpo.
escreva, escreva, não pare de escrever, eu penso e, assim, tento em vão sobrepor a voz dela com o estalar das teclas da máquina.
já havia passado e enfrentado monstros piores, eu sei. mas também sei bem que meus monstros não são mesmos monstros do outro.
sim, eu sou o outro, sinto pelo outro, existo a partir do outro, sempre foi assim, isso nunca muda. empatia?
em lágrimas, suplico para ir ao banheiro e em um ato de misericórdia ela se dispõe a me guiar até lá.
siga o som. eu sei.
sigo o farfalhar de um som como guiso de cobra (poderia ser?) até uma porta.
um, dois, três.
giro a maçaneta para encontrar um cômodo estéril, a luz branca quase me cega.
o sangue de minhas mãos vai tomando conta do chão do como, colorindo, dando vida.
abro a torneira e apoio a palma das mãos nas beiradas da pia.
ainda sem a coragem de deixar a água encostar em meus dedos, olho para o espelho.
10 minutos, foi isso que ele disse? talvez menos?
me encaro, me vejo em minha melhor forma, como se as lágrimas, a dor, nada existisse.
por 10 minutos.
nada aconteceu, me vejo sólida, sóbria no espelho. nada aconteceu.
agora, a dor em meus dedos aumenta, abro a torneira e depois arfar de dor, o alívio finalmente vem.
a água vermelho-sangue escorre pela pia.
levo meu rosto.
sem nada para me secar, a água-sangue caia do meu rosto manchando a camisola branca já um pouco tingida de vermelho.
o espelho, claro.
bato com força o cotovelo na superfície do espelho e pego o pedaço mais lâmina, uma faca só lâmina.
o agitar do corpo faz o sangue quente escorrer ainda mais pelos meus dedos.
giro a maçaneta em falso algumas vezes até finalmente a porta se abre.
a luz do banheiro se apaga.
um, dois, três.
sego o guiso da possível serpente até a frente de meu calvário.
com o espelho-facasólâmina em mãos fico diante da cadeira, diante da escrivaninha, diante da máquina, diante da luz amarela que ilumina só o que eu devo ver.
espero até ouvir o primeiro lamento da patética voz dela.
decidida enfim a confrontar minha algoz, me movo no escuro guiada pelo sentimentalismo a flor da pele que a permitia se expressar.
chego perto o suficiente para me arriscar tatear o escuro.
cruel? sim, mas não mais cruel do que ela havia sido.
escreva, ela me dizia, escreva, e meus dedos não aguentavam mais. ESCREVA.
quanto tempo já havia se passado?
semanas?
escreva. escreva.
eu sabia que ela não ia parar, eu não tinha outra saída.
em meio ao breu, toquei seu corpo, seus olhos me agora me iluminam.
levanto a faca só lâmina que começa a escapar dos meus dedos.
a adrenalina me faz sangrar mais.
antes que a lâmina caia, ela a segura.
o justo? me pergunta enquanto me encara com seus olhos negros-farol.
o justo. minha voz soa.
o justo, ela repete.
com a mão ferida, reparte o pedaço em dois.
estendo as mãos e abro a boa, como quem recebe uma hóstia.
cuidadosamente ela deposita o espelho em minha boca.
se preparou também para receber sua comunhão, e assim eu a concedo.
em um primeiro olhar de cumplicidade, engolimos.
a dor me purifica o corpo e o espírito.
a dor me faz viva.
a dor me acorda.
a dor me traz a consciência.
10 minutos, o alarme toca.