DOMINGO A NOITE
Que horas são? Já é tarde! Tarde o suficiente para estar cansado, mas cedo demais para vencer a insônia. A TV do quarto cochicha mais uma série policial genérica da Netflix, e mesmo que eu não tenha prestado muita atenção, posso dizer exatamente o que vai acontecer em seguida. Minhas costas doem, a cama é velha, e a espuma dos travesseiros praticamente não existe, de qualquer forma, isso não faz a mínima diferença.
Arrasto o corpo até a sala, ao passar pela cozinha, meu vício em cafeína flerta com o desejo impulsivo de tomar mais uma caneca cheia de café, respiro fundo, a cafeteira vai ligar sozinha daqui algumas horas. Paro em frente a janela da sala, a maioria dos apartamentos do horizonte já apagaram as luzes, restando apenas os LEDS da madrugada. O tempo passou!
Sinto falta das madrugadas regadas a conversas dramáticas, falta dos cigarros, da pizza barata e das garrafas de vinho com gosto duvidoso, sempre odiei vinho barato, mas agora daria qualquer coisa por uma noite como aquelas. Gosto de lembrar da Gabriella bêbada no sofá, conversando sobre arte e filosofia como se fosse uma acadêmica dos anos 30, o mesmo não podia ser dito da sua prima, Lara fazia o tipo intelectual ignorante, uma ríspida filha da puta, mas é divertido pensar que a gente se provocava até espontaneamente, acabarmos se beijando uma ou duas vezes depois de ter exagerado na tequila. Parecemos todos perdidos, vazios e voláteis, como se fossemos parte da geração perdida dos livros de Hemingway, Fitzgerald e Stein, e por que não? Havia uma incerteza incômoda no ar! As pessoas abandonavam as bandas de garagem, os rolês de apartamento com horas de conversa e os bares underground. Ninguém fazia questão de ser uma boa companhia a alguém, e nas sextas feiras, bastava mais uma ida a balada, meia dose de ecstasy e três shots de tequila, aos poucos, tudo ficava raso. Lembro como eu podia virar a madrugada em algum bar da Trajano, escorado na Camila enquanto a gente ria da cara de outro playboy fingindo entender sobre feminismo só pra transar com uma caloura de sociologia, depois, o grupo inteiro dividia um maço roubado de Gudang, indo em direção ao 92 pub. Bebíamos o resto da noite, e depois de umas três horas dançando com covers de Bikini Kill, Bad Religion e Plebe Rude, dormíamos todos juntos no mesmo quarto, encolhidos como filhotes de rato por causa do frio. Agora nossos bares abrem espaço para conservadores e nazistas enrustidos, os filhos do batel desceram pro Largo e pra Sanfra, Instagramando e aumentando o preço de tudo, e por fim, o “pizza” agora virou “pizza bar” e já não cobra mais cinco reais em uma fatia requentada.
Os anos se passaram e eu simplesmente não me dei conta. A maioria dos meus amigos se foi, e a parte que não morreu, se tornou tão insuportável que dá desgosto de retornar o contato. A internet cresceu e as bolhas foram sugando o restante dos intelectuais que “não precisam de ninguém”, falsos militantes privilegiados e talvez o pior tipo, jovens investidores, todos resolveram dar as caras, poluindo a porra toda como uma valeta que fede em dia de calor. Nem parece que todos eles já estiveram juntos, tacando pedras na viatura da PM, nadando pelados na piscina de uma casa alugada, vomitando horrores depois de passar a noite toda misturando álcool. A contracultura morreu, o companheirismo se tornou frase motivadora de instagram, e no final, nem mesmo as fotos ficaram. Agora somos escravos modernos, trabalhando de segunda a sexta por um salário medíocre que pasmem, só paga as merdas das contas, isso se você tiver a sorte de não precisar trabalhar aos finais de semanada. Quando saímos para beber, conversamos com nossos celulares, e se quisermos achar um bar descente, o custo vai ser caro o suficiente para sermos estimulados a desistir da ideia; Nas poucas vezes que dá certo, somos obrigados a enfrentar um misto de música ruim com gente que se droga demais para interagir, ou que não consegue controlar o tesão reprimido, tendo que passar a noite inteira com a boca grudada em alguém.
O despertador vai tocar, e mesmo que eu não tenha dormido, eu vou levantar e pegar um ônibus lotado para um trabalho que não me realiza e não me adiciona, vou ficar lá até o entardecer, tudo para voltar pra casa e encontrar a louça do café da manhã junto de um catálogo de filmes parecidos demais para eu fingir interesse. Tem quatro anos que moro aqui, quatro anos que moro em um apartamento de mais de noventa metros quadrados e nunca dei uma festa, nunca convidei ninguém, e quando tentei, me dei conta que não havia quem chamar. Estão todos cansados e ocupados, mas ao mesmo tempo, frustrados, tão frustrados que as poucas vezes em que saem, precisam fugir da realidade para sentir que ainda vale a pena viver.
Será que isso significa envelhecer, ou de fato, a visa se tornou vazia?